Por que voto e eleição precisam de papel?
Em que pesem o título sugestivo e as tantas polêmicas que o tema desperta, antes de mais nada, esclareço que o meu texto não é sobre suspeita de fraude, auditabilidade (ou não) de urnas eletrônicas, defesa desse ou daquele político, antipatia (ou simpatia) pelo modelo eleitoral brasileiro, muito sobre a eficiência (ou não) do nosso atual sistema de votação.
Resolvi escrever esse texto, a propósito de Emenda, de autoria do Senador Espiridião Amim, ao Projeto de Lei Complementar 112, que, dentre outras alterações ao Código Eleitoral, tornará obrigatória a impressão de votos, em paralelo à votação eletrônica.
Isto porque, a discussão sobre o sistema de votação brasileiro, especialmente sobre ser necessário (ou não) imprimir cada voto, desvirtuou-se, descambou para uma espécie de “briga de torcidas organizadas”, em que os aspectos jurídicos, ponto crucial para a definição da questão, findaram relegados a segundo plano.
Nesse sentido, a abordagem que trago aqui é exclusivamente técnica, versa sobre a distinção entre interesses públicos e privados, assim como acerca da natureza jurídica dos atos a cargo da Justiça Eleitoral.
Vamos lá!
Diferentemente dos direitos privados, cujo titular é um particular, que deles pode fazer o que bem quiser, os interesses públicos são indisponíveis, na medida em que não pertencem a ninguém isoladamente, pelo que as autoridades que os istram têm o dever de prestar contas, ao povo em geral, sobre todos os seus atos, de maneira objetiva, formal e transparente, devendo, por essa razão, documentá-los e publicizá-los.
Esses fundamentos não são diferentes no que concerne à istração e ao funcionamento do sistema eleitoral.
Votos são a materialização das escolhas do povo, titular, destinatário e razão de ser (e de existir) do estado, do direito e da democracia.
Portanto, o processo eleitoral precisa ser formal e transparente, isto é, inteiramente documentado e submetido à publicidade, em todas as suas fases, já que, sendo de interesse público, precisa respeitar, obrigatoriamente, os princípios que regem a istração pública, a teor do art. 37, CF.
Importante esclarecer, nesse o, que o fato de o voto ser sigiloso, quanto à identidade do eleitor (para que seja livre de pressões a manifestação de sua vontade), não impede, muito menos dispensa, a necessidade de se documentar formalmente cada um dos votos, preservá- los como unidades e, principalmente, contá-los (e se o caso, recontá-los) publicamente.
No Brasil, embora o modelo eletrônico, que vem sendo usado em todas as eleições, tenha a qualidade de conferir celeridade à votação e à divulgação dos resultados, tal não se coaduna com as regras legais e constitucionais vigentes.
É que as escolhas dos eleitores não se materializam em votos, muitos menos em cédulas isoladamente documentadas, coletadas e guardadas nem existe contagem pública.
Digitar o número de um candidato em uma máquina não é votar, pois a imagem em uma tela não é igual à materialização de um voto nem a mensagem de encerramento que ali aparece é o mesmo que depositar uma cédula em uma urna.
Do mesmo modo, apresentar um boletim de urna, com a soma do que seriam as escolhas, digitadas por vários eleitores em uma máquina, não é igual a cumprir o requisito constitucional e legal de coletar, documentar, guardar e contar cada um dos votos publicamente.
Isto é, ao se digitar o número de um candidato na máquina e se confirmar a escolha a partir de uma imagem que se vê na tela, o que seria equivalente ao voto de um determinado eleitor desaparece definitivamente como unidade e se torna apenas uma espécie de item invisível de uma soma geral, que é lançada no boletim de urna, que jamais poderá ser cotejada com as escolhas antes feitas por cada um dos eleitores, justamente porque esses ditos “votos” não existem no mundo material (ou virtual), dado que não são individualmente preservados, documentados nem guardados fisicamente para contagem pública ao término da votação.
Portanto, para que as eleições se compatibilizem com as regras constitucionais que regem a istração pública, e com o próprio Código Eleitoral, é imprescindível que se façam a impressão de cada voto e o seu concomitante depósito em uma urna física, onde as cédulas devem ficar guardadas para posterior contagem pública (e eventual recontagem, em caso de dúvida justificável).
A ideia é que o sistema funcione assim: o eleitor faria a sua escolha em uma máquina eletrônica, tal como ocorre hoje em dia, no ato, conferiria a sua escolha na tela, que, uma vez confirmada, seria impressa, materializada em uma cédula, automaticamente depositada em uma urna física acoplada à máquina eletrônica, para que, finda a fase de votação do processo eleitoral, houvesse a contagem pública, voto por voto, como exigem o Código Eleitoral, a Constituição (princípio da publicidade) e o dever de prestar contas, que toca a todo servidor público, cujo conceito abrange também as autoridades responsáveis pela gestão e decisões judiciais eleitorais.
Através desse procedimento, importante ressalvar, não haveria a identificação do eleitor nem seria revelada a sua escolha, posto que o voto impresso não conteria qualquer referência à sua identidade nem seria levado consigo, como se chegou a imaginar quando o tema (do voto impresso) foi pública e judicialmente debatido.
Como já dito no início desse texto, a definição sobre essa questão, que deveria ser apenas jurídica, acabou por ser desvirtuada pela acirrada disputa política que divide o país, o que, certamente, impediu que fossem adotadas soluções técnicas, como as que ora são apontadas, as quais, a toda evidência, além de terem o mérito de adequar o processo eleitoral aos conceitos e regras legais e constitucionais vigentes, fulminariam, de uma vez por todas, as “teorias da conspiração” e a aura de insegurança e suscetibilidade à fraudes, que parcela significativa do eleitorado enxerga ao redor das eleições brasileiras.
Diante de tudo, para concluir, é o caso de perguntar: o que poderia ser mais democrático e coerente com o estado de direito (e confortável às autoridades eleitorais e candidatos) do que dotar o sistema eleitoral de mecanismos que o façam compatível com as regras constitucionais e legais, bem como aos conceitos de direito público que se lhes devem aplicar, e ver encerrada a interminável discussão entre quem acredita em fraudes eletrônicas e aqueles que classificam as críticas ao modelo de votação atual como ataques às instituições?
Em tempo, sei que é óbvio, mas não custa relembrar: É só do Legislativo Federal a competência para debater, elaborar e definir as regras eleitorais. Executivo e Judiciário não podem interferir no tema, sequer para “opinar”, pois têm eles o dever constitucional de respeitar o Parlamento e os seus próprios limites institucionais.
* Sócio do GCTMA Advogados, procurador aposentado do estado de Pernambuco, Conselheiro de istração/IBGC.
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